A revolução francesa escolheu três palavras para expressar seus ideais, colocando a ciência e a filosofia como marcadores fundamentais da verdade. Os referenciais religiosos como indicadores do progresso cultural, da perfeição e do rosto da verdadeira dignidade humana foram dispensados. Liberdade, igualdade e fraternidade são valores maravilhosos que brotaram do cristianismo, mas escolhidos no abstrato; são ideias, sonhos que, para serem alcançados, necessitam de algumas regras, de diretrizes que facilitem a convivência sem que ninguém se faça nem se sinta maior do que o outro.
O choque provocado pelo assalto e assassinato dos artistas e comunicadores do semanário francês Charlie Hebdo comoveu profundamente o povo francês e essa emoção se disseminou pelo muno. O fato foi elevado a símbolo de ataque a toda a nação. A comunicação aproveitou a oportunidade para focalizar a liberdade de imprensa e de opinião. Liberdade como todos os valores necessitam de regras não estabelecidas pelos que dela querem usufruir para alcançar seus objetivos, mas pela conjugação de direitos e deveres de quem produz e de quem consome. A charge tem direito de exigir liberdade, mas, por mais bem feita que seja, ela esconde sempre um objetivo: exaltar a um e rebaixar a outro. E a arte, fruto da habilidade do artista, pode tornar o conteúdo mais sofisticado e interessante para o público.
Este evento de caráter violento dá-nos a oportunidade para pensar na complexidade da convivência democrática que, por mais perfeita que seja, beneficia com privilégios de vária ordem os governantes, os herdeiros de capital e os que, com pretexto de democracia e de liberdade, conseguiram concentrar grandes patrimônios e através deles controlar todos os meios de comunicação que, dia a dia, se vão globalizando.
Liberdade sem igualdade de oportunidades permanece uma palavra vazia. Liberdade de expressão para quem montou um trono e se colocou ao serviço de uma classe social sem dar espaço para que os que se sentem atingidos pelas piadas e “charges”, por mais comunicadoras que sejam, não deixam espaço para responder no mesmo nível. Quando as identidades de grupos e de nações são ridicularizadas, os intolerantes podem levantar a fúria até ao extremo e ensanguentar as ruas e os lugares mais edificantes que existam. Se a liberdade for garantida pelo policiamento, ela se esvazia de sua verdadeira função de estar ao serviço da vida. Liberdade desligada da igualdade e da fraternidade pode virar uma idolatria pura, onde a consciência individual se endeusa como rainha do universo. Ninguém é dono da liberdade nem da verdade. Elas necessitam viver de mãos dadas para crescer. A minha liberdade não pode ferir a liberdade do outro. Me parece que a escolha do atentado a um jornal desse tipo foi propositadamente simbólica
Todas as escolas da França decidiram fazer um minuto de silêncio em atitude de solidariedade pelas vítimas do atentado no dia 8 de janeiro. Depois do silêncio, em muitas escolas, os professores abriram espaço para perguntas e partilha de sentimentos. Veio uma surpresa que os professores nem tinham imaginado; a maioria dos alunos, adolescentes e jovens, acham que a liberdade de comunicação necessita ser regulamentada porque muita gente abusa desse benefício para proveito pessoal e de grupo.
Os jovens levantaram uma questão fundamental sobre a qual é necessário refletir em nossos dias. A liberdade não pode permitir que se faça uso de um meio para ridicularizar uma identidade cultural nem uma pertença existencial.
O ocidente construiu a sua cultura fortemente alicerçada sobre um liberalismo moderno que desenhou também um rosto de oportunismo. A ideia de democracia se tornou paradigma universal no ocidente a tal ponto que parece ser justo transplantá-la da forma como se formalizou para qualquer país. Parecia ser um milagre transplantar a democracia para o Iraque sem nada ter resolvido do que pretendia segundo os discursos político s da época. A liberdade significa que é necessário deixar espaço para que o “outro” também possa escolher. Liberdade não pode colocar-se a cima de tudo e de todos. Desde a segunda guerra mundial, quando os vencedores decidiram fragmentar o médio oriente para melhor poder explorar suas riquezas, o mundo árabe na sua grande maioria, desenvolveu a ideia de que o mundo ocidental é seu inimigo. O alcorão para nós ocidentais é a fonte do radicalismo intolerante, para eles é a arma de defesa que lhes resta para não se sentirem dominados. O sonho da primavera árabe não obteve aquela sucesso que parecia ser fácil alcançar.
A sociedade moderna necessita aprender a construir pontes entre povos e culturas diferentes, sem querer impor seu projeto, colocando as barreiras que lhe convém para que o “outro” não transite livremente para o seu lado ou usufrua das mesmas condições de liberdade.