E tu, Marandallah…

E tu, Marandallah, terra do Bere,
de modo nenhum és a menor entre
as vilas africanas porque, do teu silêncio,
brota a música
que ecoa por toda a terra.”

Muitas vezes, não temos consciência da força e do poder que pequenos objectos têm ao serviço do espírito humano. Uma caneta, um lápis, uma folha de papel... Poder inesgotável. Sem medida. Sem limites. Ou talvez não. Diante de mim, trava-se uma batalha inédita por um grupo de mulheres, na sua maioria vindas das comunidades rurais mais pobres do norte da Costa do Marfim, que agarram o giz com a mesma força com que agarram o cabo da enxada quando penetram ou rasgam a terra. Sobre um pedaço de madeira abrem sulcos, cavam covas, semeiam grãos. A cena é divertida mas também dramática. Faz rir e dá vontade de chorar. Desenham o limão mas não sabem que é um “o”; desenham o pilão mas não sabem que é um “l”; desenham o grão de milho mas não sabem que é a ponta do “i”; desenham a metade da cabaça, mas não sabem que é o “c”, ou o “u” ou... A sua alegria por esboçar uns sarrabiscos torcidos é imensa. Parecem crianças exaltadas, empurrando-se umas às outras para mostrarem a todos as letras deformadas, acabadas de sair do forno das suas habilidades. Ao olhá-las, sinto um aperto imenso no estômago por me dar conta que, a maioria delas, nunca aprenderão a ler e a escrever mesmo que a sua vontade seja tanta. Foram convocadas para um encontro de sensibilização e formação de três dias sobre a importância da alfabetização para o seu próprio desenvolvimento. A festa culmina com a celebração do dia mundial da mulher, cuja tradução em língua local está a ser ensaiada. A maioria delas é a primeira vez na vida que se sentam numa cadeira com um lápis e um caderno nas mãos. Mas a vida está cheia de mistérios. Quando um grupo de mulheres se encontram, o resultado e as consequências podem ser imprevisíveis O que está a acontecer aqui neste momento, na sua forma rude e simples, pode ter na vida destas mulheres o mesmo impacto que teve para a humanidade a descoberta do fogo, da roda ou do espaço. O caminho a percorrer é também ele longo e árduo mas é possível Não sabem ler nem escrever mas têm consciência que, a alfabetização, é o remédio contra a cegueira que as domina, essa doença social causada pela indiferença e agravada pelo egoísmo. Não pedem muito. Pedem apenas que alguém lhes dê um pouco de atenção e as ajude a desenhar, pelo menos uma vez na vida, as letras que compõem os seus nomes: “Soro”, “ Yeo”, “Tuyo”. Uma vez na vida.

Marandallah, esta pequena vila do outro lado do mundo onde os credos e as raças se misturam numa convivência pacífica, é uma terra abençoada. Cada parcela de terra onde há vida é sempre abençoada mas aqui, a vida é abundante. Expande-se sem limites, multiplica-se sem cessar. É uma maternidade a céu aberto. Mas esta vida que cresce e se multiplica, que é abençoada, é também ameaçada. As razões são muitas e todas justificadas. São internas e externas. Humanas e sociais. Geográficas e históricas. Políticas e religiosas. A maioria das pessoas não conhece uma letra. A sua escola é a terra e os seus mestres são as abelhas, os pássaros e as formigas. O instinto de defesa e a necessidade de sobrevivência impõem leis associadas ao clima. Fraternas e amigáveis quando a chuva é abundante, rudes e agressivas quando os poços secam. A autoridade local, exercida por chefes tribais e religiosos perdidos no tempo, concentra-se nos “Timoté” e nos “Teoté”, detentores de rituais e tradições antigas em pleno acasalamento com as motas, os telefones celulares e a energia eléctrica recém chegada. Não imaginam o dia em que nasceram mas tem a certeza que o seu funeral será grandioso. A atmosfera que envolve esta parcela do mundo, aparentemente calma, está carregada de forças invisíveis que arrastam as pessoas para barrancos onde as trevas devoram a luz e a razão é tragada pelo medo. A religião predominante é o Islão e convive, sem esforço, com o sincretismo e todo o tipo de celebrações onde se canta e dança. As mezinhas e raízes, sem necessidade de receitas, passam ao lado do centro de saúde e esticam a vida até onde podem. A astúcia rivaliza com a honestidade e, os mais esclarecidos, fazem-se honrar e pagar pelos bons conselhos que dão ao povo. A cadeira do Chefe do Cantão é um monumento e a sua palhota uma aula magna onde os saberes se misturam. Todos lá vão parar: Imanes, pastores, adivinhos, médicos tradicionais, curandeiros, charlatães, comandantes, perfeitos e sub-perfeitos. Todos homens. Que riqueza. Mas a riqueza deste povo são as mulheres. Sabem rir e chorar, servir e não servir-se, sofrer e amar e sabem também sorrir e brincar porque a vida, sobre tudo por aqui, é demasiado curta para não ser levada a sério.

Não é aconselhável chegar a Marandallah sem se apresentar e partir sem se despedir. Seria como um desprezo, uma indelicadeza, quase um insulto à natureza, aos espíritos dos antepassados, às instituições presentes. Passar por Marandallah quer dizer, tomar consciência da própria existência. Ser apresentado, escutado, cumprimentado. Para uns, a coreografia pode parecer insólita, exagerada ou até mesmo cómica, para outros, simplesmente “surpreendente”, “estupenda”. As perguntas que compõem o ritual são baldeadas de pessoa para pessoas segundo a categoria e quase todas simples e inofensivas. Não é necessário espantar-se se algum dos chefes locais perguntar se a França fica na América ou se os brancos são todos inteligentes. A inocência aqui é mesmo pura. O mundo existe até onde chegam os olhos e, para o chefe muçulmano local, o seu rosto é o de uma criança quando exibe aos estrangeiros o presente que recebeu à mais de 30 anos duma maquete em ferro fundido da “Notre- Dame” de Paris e o mesmo lhe passa quando nos convida à mesquita e nos pede para rezar e abençoar toda a assembleia.

Na maioria das viagens que faço à capital e outras vilas maiores, quando falo de Marandallah, as pessoas perguntam: “Mara..o.. quê?” ou, “Onde é isso?”. Ao escutar tais perguntas, a resposta que me sai espontânea é: “se tu soubesses...!». No tempo que levo com esta gente, quase quatro anos, não parei de aprender e, de uma forma ou de outra, estou marcado. As marcas são invisíveis, mas não por isso menos intensas e profundas. Para conhecer um povo, é necessário amá-lo mais que compreendê-lo e, para amá-lo, é necessário escutá-lo e contemplá-lo. É necessário diluir-se no seu ser, correr nas suas veias, morrer e ressuscitar na sua alma. Mas amar, é também deixar-se amar. No “Jardim da Amizade”, ícone natural da fraternidade que cresce nesta terra, o silêncio da Virgem de Fátima que contempla o tronco de madeira onde Jesus se dá a todos de braços abertos, é a imagem que melhor se ajusta a este povo: não um povo esquecido ou desconhecido, mas um povo que existe e se comunica através do silêncio. O silêncio é uma atitude humilde e nobre ao mesmo tempo. A dor manifesta-se pelo grito como direito à própria existência; o sofrimento, pelo silêncio como transcendência dessa mesma existência. Por isso mesmo, o sofrimento deste povo não é triste. Se o sofrimento de Maria que contempla o seu filho neste jardim está animado pela dança de árvores exóticas ao ritmo do canto exuberante dos pássaros, o sofrimento deste povo está animado pela dança interminável ao ritmo de vozes misteriosas. Tal como as árvores e os pássaros, dançam e cantam apenas por puro deleite.

 São elas, as mesmas mulheres que há algumas horas atrás pareciam crianças a exibirem as suas primeiras letras sobre um pedaço de madeira, que agora cantam e dançam consoladamente à volta duma árvore imensa onde a Virgem de Fátima construiu o seu ninho. Em compasso, deslizam à direita e à esquerda, rodopiam e, passando á frente da Virgem, levantam para ela os braços e lhe dizem “Ninguém é pobre quando tem uma mãe como tu!”. Dentro de algumas horas, regressarão a si mesmas a pé ou transportadas por uma moto-triciclo em que cada buraco da pista será motivo de tantas gargalhadas. Para trás, ficarão momentos únicos de alegria por terem tido a oportunidade de se encontrarem durante o dia, de se olharem ao espelho durante a noite e de saberem que há um dia por ano para as mulheres. A partir de agora, o pedaço liso de madeira será substituído pelo campo áspero e sem limites, o pau de giz pelo cabo da enxada, o limão voltará a ser limão e o mesmo se passará com o pilão, o grão de milho ou a metade da cabaça. Já não terão mais tempo para o jogo do sapo, do futebol ou para os passeios pelas ruas da vila sem fardos à cabeça. Tudo será esquecido rapidamente. Tudo, excepto o que não se pode esquecer.

Aquilo que é autêntico, jamais poderá ser esquecido e, muito menos, gravado sobre um pedaço de madeira: pertence ao silêncio e, o silêncio, não se diz nem se escreve. Ninguém é mais do que ninguém só porque ensina nas universidades ou recebeu o prémio Nobel por desvendar a cadeia do ADN ou a composição dos anéis gelados de Saturno. Este povo e, sobre tudo, estas mulheres, nunca foram à escola mas estão cheias de dignidade, de sabedoria, de segredos infinitos. Para os desvendar, é necessário aprender uma nova linguagem que não pode ser escrita nem pronunciada, mas apenas sentida pelo coração daqueles que acreditam. A fé tem muito poder. O poder deste povo, destas mulheres, é a sua fé, o seu silêncio. É esse silêncio que elas guardam que um dia gostariam de nos comunicar. Oxalá as pudéssemos escutar.

Marandallah, 13 Março de 2015

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